quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Que escândalo! Que escândalo!

Uma carta de Eça a Ramalho Ortigão


Newcastle 10 Novembro 78

Meu querido Ramalho

Como são belas as promessas escritas no papel! Vai-se à Exposi­ção - mas quer-se ver o amigo íntimo! Sem o amigo a Exposição seria tão pouco saborosa como a Feira das Amoreiras. Que o amigo íntimo venha a Paris... Mas tal é o desejo de o abraçar - que se ele não puder vir a Paris ir-se-á a Londres! E mesmo, que diabo, se ele não vier a Londres, ir-se-á a Newcastle! Mas que se abrace o amigo íntimo! Exclama-se: «É necessário que nos encontremos em qualquer ponto do mundo!» significando-se que se está pronto para o ver a trepar aos píncaros do Himalaia, ou a descer aquelas profundidades oceâni­cas onde habita a pieuvre e o galeão de Vigo! - Depois parte-se, com uma chapeleira e com o Eduardo Coelho! Chega-se ao Havre, onde outrora o grande Brummel, deus do dandismo, foi vice-cônsul! E enfim avista-se a luz eléctrica da Place de l'Opéra - espanto e confusão da burguesia de dois hemisférios. E desde esse dia, Un silence parfait régne dans cette histoire... Então volta-se, der­reado de admiração, e faz-se ouff! ao depor a chapeleira a um canto duma vivenda, na Cruz Quebrada. Os dias passam, o glorioso Tejo defronte evapora amor da pátria, o nome do viajante repimpa-se ao comprido da local, reclinado a adjectivos fofos, - e uma manhã, ao abotoar a braguilha, exclama-se, com um berro de vergonha e de dor:
- Oh diabo, que lá esqueci o amigo íntimo!
Quem foi que escreveu um tratado estimável sobre a Amizade? Cícero ou Séneca? Em qualquer caso na impossibilidade de remeter a um desses literatos este caso, como material para um capítulo misan­tropo sobre a solidez da amizade em viagem - corramos um véu teci­do de benevolência e bordado a perdão sobre este episódio cómico.

Passo ao segundo ponto da minha carta. Conhece Você, nos jun­cais do Porto um tigre por nome Chardron? Essa fera escreveu-me há tempos, dizendo d'un ton paternel que ia encomendar a minha biografia a um literato da capital. Fiquei azul de pavor. Vê Você, daí, Gervásio Lobato fazendo variações sobre o meu nascimento? Escre­vi para os juncais do Porto, melifluamente, dizendo que seria inútil incomodar um génio, com um assunto tão terre-à-terre; que verdadeiramente havia só um homem que, com conhecimento, poderia escrever a minha história - e esse homem era... Como o sabia a Você seguro em Paris, citei-o a Você - porque tinha de citar um nome. O tigre reentrou na caverna. Eu respirei. Há duas semanas, vem-me do Porto um grande grito de júbilo, que se traduz assim – o homem chegou, Ramalho está, Ramalho vai escrever a Biografia, e Ramalho quer publicar o que escreveu nas Farpas sobre o Padre Amaro com mais alguma curiosidade biográfica, salpicada em inter­valos. - Em presença deste facto - eu só tenho a dizer: Suspendei, senhor!Raciocinemos. O artigo sobre o Amaro era uma interpretação do meu talento feita pela sua amizade: julga V. que a minha nova edi­ção do Amaro deve abrir por um esplêndido elogio, feito, como ele os sabe fazer, pelo meu melhor amigo? Não. Portanto, querido Ramalho, combinem quelque chose de mieux. Se V. aceita a enco­menda da minha biografia - não se esqueça de que ela é publicada num livro meu, e que o País todo, e as terras de Santa Cruz sabem que nos liga uma amizade fraterna. Qualquer elogio - seria incitar o leitor - di cá ou di lá a rosnar, escabichando o dente: - Compadres!
Faça portanto alguma coisa de curto, seco, sóbrio, - como se se tratasse de si mesmo.
Dados para a minha biografia - não lhos sei dar. Eu não tenho história, sou como a República do Vale de Andorra. O tigre Char­dron exclama: - Mande-lhe todos os documentos. Que documentos, meu Jesus? Eu só tenho a minha carta de bacharel formado. Qué-la? O mais regular seria fazer a história da minha literatura: é escasso, bem sei, mas é correcto. De resto devo dizer-lhe que O Crime do Padre Amaro é um romance novo: do romance que Você leu só fica o título: o mais, linha por linha, sofreu uma tal transformação que esta edição diverge tanto da primeira como o D. Quixote da Henriade: este símile é para marcar a quantidade de diferença, não a diferença do género. Fiz bem, ou mal - em refazer assim um velho romance? Obedeci a uma espécie de instinto - e o caso é que vai você ver um estranho trabalho.
Portanto ficamos entendidos: biografia sem elogio, é o motto. Se se tratasse dum artigo para uma revista eu então francamente pro­poria outro motto: - Elogio sem biografia.

Vamos agora ao terceiro ponto da minha carta: mas antes de mais, abra essa epístola para o Corvo e leia. Eu no entanto acendo um cigarro... - Leu? Que lhe parece?
Explicar-lhe-ei primeiro por que concebi o livro - depois por que escrevi ao Corvo.
Concebi o livro, uma tarde, em casa duma senhora, estando só com ela; ela tocava ao piano a gavotte favorita de Marie Antoinette - e eu ao pé do lume acariciava um cão. De repente sem motivo, sem provocação - lembrou-me, ou antes flamejou-me, através da ideia, todo esse livro tal qual o descrevo: singular, não? Fiquei aterrado: supus ser ou um pressentimento, ou uma visão. Depois a minha segunda exclamação mental foi esta: - que escândalo no país!
Você - conhece-me - e está aí a ver que me despedi da senhora, e vim para casa, lançar o esboço do escândalo para o país. É simples­mente o que eu quero fazer: é dar um grande choque eléctrico ao enorme porco adormecido (refiro-me à pátria). Você dirá:
- Qual choque! Oh ingénuo! o porco dorme: podes-lhe dar quan­tos choques quiseres com livro, que o porcohá-de dormir. O destino mantém-no na sonolência, e murmura-lhe: dorme, dorme, meu porco!
Perfeitamente: mas eu estou-lhe a dizer o que pretendo fazer – e não que o país fará: naturalmente, continuará a dormir: veremos. - Além do escândalo - quero dinheiro. Se o Primo Basílio se vendeu - por que se não há-de vender a Batalha do Caia? Cuida V. que lhe hão-de faltar os episódios picantes, lúgubres, voluptuosos, épatants? Pas si bête. Há-de ter de tudo: um salmis d'horreurs. O burguês gosta da rica cena de deboche? Há-de tê-la: somente desta vez é a sua própria filha violada, em pleno quintal, pelo brutal catalão dos dragões de Pavia: - a sua própria filha, a quem outrora Bulhão Pato murmurava: Lembras-te ainda dessa noite, Elisa? Portanto - se o livro se vende - por que não hei-de fazer especulação e tratar de pagar as minhas dívidas? Donc, résumons: choque eléctrico ao porco, e dinheiro para bebé (bebé c'est moi).
Agora para que escrevi ao Corvo: é que a coisa é séria; eu sou um empregado do Governo - e um tal livro é grave: o episódio dos dois compatriotas inteligentes não é inventado: eu li o esboço ao Vaz, rapaz distinto, nosso attaché em Londres: estou a vê-lo no meu sofá, com as mãos apertadas na cabeça, murmurando com um ar azabumbado: - Que escândalo! Que escândalo! - Quando eu cheguei ao capítulo (li-o no plano-argumento) da fuga do rei, e da anarquia em Lisboa - o rapaz ergueu-se, pálido:
- Oh amigo! Oh amigo! Et il avait des larmes dans la voix!Despediu-se de mim, dizendo com um tom lúgubre: - Queime isso! Queime isso!
Não quero, portanto, que o Corvo me possa dizer depois - V. não tinha direito a publicar semelhante livro.
Mas há outra razão para eu escrever ao Corvo - é que este traba­lho representa para mim capital: e se ao ministério regenerador não convém que se diga de antemão, o que há-de acontecer em breve - e se me força a inutilizar um capital, deve indemnizar-me. Isto é claro como o bom Bordeaux. Não lhe parece? Talvez V. não ache estrita­mente moral: responderei como Darwin: - na luta da vida ser fraco é quase ser culpado.
Agora direi para que lhe mandei a carta ao Corvo: para que você a leia - e decida, compenetrando-se da amizade que nos une há tan­tos anos, o que tem de melhor a fazer para me levar este caso a bom caminho - isto é torná-lo o mais rendoso possível para bebé (bebé c'est moi). Se Você pensa que não deve aparecer neste episódio, passe o lábio pela cola do sobrescrito, assente-o com a palma da mão, e meta-o numa carta dizendo: - «O Queiroz pede-me para lhe remeter esta carta».
Se V. entende que deve, num assunto - que é de política, de Arte e de interesse para mim, ir falar-lhe, põe o chapéu, et va chez lui. O homem lê diante de V., a pedido seu.
E então, uma de três:
Ou diz, rindo: - que diabo, diga ao Rapaz que pode publicar, é inteiramente inofensivo! - Nesse caso, você aperta-lhe a mão, e exclama: - Essa palavra, Exmo Sr., é dum grande Estadista! - E sai pela porta do fundo.
Ou o Corvo hesita, faz beiço, coça a cabeça, e mostra-se, como dizia um amigo meu - esquisito em quanto à resolução. Você, então, toma o seu tom mais filosófico, e diz:
- O Queiroz está absurdo: publicar um tal livro é fazer um escân­dalo internacional: é revelar a nossa fraqueza, a nossa desorganiza­ção: é despertar o ódio vago do país contra alguém que lhe criou uma situação donde pode sair uma tal catástrofe. Esse alguém que ele procura para odiar - aparecer-lhe-á sob a forma visível de quem tem neste momento o poder: Rei e Regeneradores... Etc., etc. Por­tanto o melhor é dizer ao homem que queime o livro: mas como o livro representa um capital, é necessário que o moço não perca tudo - glória e proveito. Mande-lhe V. Sa abonar uma certa quantia (carre­gue na quantia: de conto e quinhentos a dois contos).
Suponhamos, porém, que ele diz: - não! nunca! Proíbo-o que publi­que semelhante coisa! - Você então toma um ar à Robespierre, e diz secamente: - Perfeitamente: é como obrariam os Cabrais; eu vou daqui fazer um escândalo nacional. É o fim da liberdade de imprensa, de opinião e de consciência. E o Syllabus, etc. (Você conhece a tirada.)
Ao menos - acrescente V. - é da mais estrita justiça que já que lhe proíbem - que publique os seus livros - se considere que esses livros representam trabalho e que se lhe pague portanto esse trabalho! Etc. (Vous savez qu'il y a une autre tirade sur cela.)
Agora diz Você:
- Mas no fim, o que quer o menino, que a coisa se publique, ou se não publique: venha sa pensée intime.
Ma pensée intime
é esta: que o livro (sendo útil como um meio de mostrar ao país as consequências de prolongar uma tão horrorosa condição de abaixamento) - é, por um lado inoportuno, por outro um ataque de folha em folha à vizinha Espanha: e serve portanto apenas para criar irritação. Por isso era melhor talvez que se não publicasse. Por outro lado - perder tais episódios literários? Oh menino! Pois não poderei eu dar à publicidade uma descrição de Lisboa em anarquia: as igrejas cheias de mulheres aflitas, as improvisações dos batalhões voluntários, os Bancos quebrando, a falta de trabalho organizando insurreições diárias, o pânico na secretaria, o burguês da Baixa em presença da catástrofe? Não poderei publicar a descrição da Sexta-feira da Paixão - em que se sabe em Lisboa que o Morning Post publicou o tratado entre as potências pelo qual a Alemanha anexa a Holanda, a França, a Bélgica, a Rússia, toda a Roménia, a Áustria, a Bósnia, a Itália, Fiume - e que a Inglaterra, isto é, Lord Beaconsfield, já no seu leito de morte, em presença da medonha demonstração de Londres, declara a guerra à Europa? É daqui que vem a Conflagração Europeia - e a invasão. Tudo isto é de boa literatura. Portanto eu queria ver a coisa impressa. Mas se o escândalo é tal que o Governo tem de me désavouer, Ah! amigo, a coisa é grave. O que resta é isto - e aí vai ma pensée intime - é que a ideia publicada ou inédita é um capital: esse capital tenho direito a ele, que me venha do Chardron (ou do público, melhor) pela publicação, ou que me venha do Governo pela proibição - é-me indiferen­te: e Você está por esta encarregado de fazer produzir capital à ideia.
Amigo, leia com atenção este volumoso documento - e responda logo o que fez, e o que se decidiu. O que eu não quero é que a ideia fique improdutiva.

Passo agora ao último ponto da minha carta - e é pedir-lhe que ponha os meus respeitos aos pés de Madame Ortigão, que mande um abraço ao bravo Jeco quando lhe escrever, e que beije por mim as mãos das suas filhas.
E abraço formidável do
Seu do C.
Queiroz

P. S. Leu por acaso o começo da Capital? Que lhe parece: mande frase que classifique, e diga se há progresso.

P. S. importante: - É indispensável que o Corvo nem por sombras suponha que o que se quer é extrair-lhe uma quantia: porque real­mente não é, e a prova é esta:
Do Primo Basílio venderam-se 3000 ex. que eu saiba: mas isto não quer dizer nada: o que importa mais é que o Chardron que manda da Capital só para o Brasil 3000 ex., da Batalha do Caia podem sem receio tirar-se 9 ou 10 000 exemplares. Vendidos a 500 rs. já V. vê que é uma especulação.
Portanto ao Corvo fala-se só em consentir e não consentir: se ele não consente - exclama-se: - Como! mas eu vim aqui, supondo que V. não podia de modo nenhum impedir, etc. O meu pedido era ape­nas uma formalidade! Veja que dinheirão o moço perde! É uma infâ­mia! Etc.
E sobre tudo isto, sigilo!


Uma vez dizia uma professora, a respeito desta carta e documentos semelhantes, que se deviam fazer desaparecer da biografia dos escritores. Que bom modo de criar postumamente homens honestos!
Porque o que está aqui é o jeito satânico do Ega d'
Os Maias… O jeito dum homem que quis fazer uma crítica envolvente ao seu país. O jeito dum homem que se propôs criticar quase tudo, mas que criticou mal, há que o dizer.
Ele não viva na realidade… A realidade pede honestidade… não este tipo de subterfúgios.
Cego guiando cegos…
O dinheiro! Há gente que se governa com tão pouco e Eça não se governava com o ordenado de cônsul? Precisaria ele de ser um Jacinto? Ou um Carlos da Maia? … Ou um Raposão?... Ou um mandarim?
“E sobre tudo isto, sigilo!” “Que escândalo!”

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